13 dezembro, 2011

348 - O Poeta e a Rosa



Ao ver uma rosa branca
O poeta disse: Que linda!
Cantarei sua beleza
Como ninguém nunca ainda!

Qual não é sua surpresa
Ao ver, à sua oração
A rosa branca ir ficando
Rubra de indignação.

É que a rosa, além de branca(
Diga-se isso a bem da rosa...)
Era da espécie mais franca
E da seiva mais raivosa.

- Que foi? - balbucia o poeta
E a rosa; - Calhorda que és!
Pára de olhar para cima!
Mira o que tens a teus pés!

E o poeta vê uma criança
Suja, esquálida, andrajosa
Comendo um torrão da terra
Que dera existência à rosa.

- São milhões! - a rosa berra
Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome!...

E num acesso de ira
Arranca as pétalas, lança-as
Fora, como a dar comida
A todas essas crianças.

O poeta baixa a cabeça.
- É aqui que a rosa respira...
Geme o vento. Morre a rosa.
E um passarinho que ouvira

Quietinho toda a disputa
Tira do galho uma reta
E ainda faz um cocozinho
Na cabeça do poeta.

Vinicius de Morais

10 outubro, 2011

347 - Lisboa velha cidade



Pelas velhas ruas de Lisboa
Perdi-me
Velhos casarios
Velhas Histórias
Velhas Poesias
Aglomeram-se

Na taberna
Encontro Pessoa
O'Neill, Cinatti,
Nobre, Florbela,
Camões....

O Tejo é azul...
Colore meus tristes olhos
e inunda de amor
a minha vida vazia,
e tudo o mais,
não é vã filosofia,
é poesia
e alegra-me o dia

O rio que passa em minha cidade
leva o meu destino,
leva o meu fado
a mares nunca dantes navegados.


Nelson Tangerini

04 maio, 2011

346 - Homenagem

Um Cão de cá...

Cão não é Gato
De facto cão é quase gente
mas não mente.
Também não é Leão
Não
Mas no essencial
a coragem é igual
Cão é de homem
Já viu homem puxando gatinho pela trela?
Gato é de mulher!
Já viu mulher segurando mastim?
Tem assaltante em casa?
Cão enfrenta!
Gato?
Nem tenta.
Gato é companhia...
Que mia.
Cão é muleta de invisual!
Mas que animal
Cão te adora
Não explora,
Como gato egoista e maltês
Que já fugiu outra vez!
Meu cão meu amigo.

Jorge Santiago

Foto: Charquinho

20 abril, 2011

345 - Identidade

























Foto: Shark



Identidade



Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.



Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório

344 - Viagem



















Foto: Shark

VIAGEM

É o vento que me leva
O vento luzitano
É este sopro humano
Universal
Que enfuma a inquietação de Portugal
É esta furia de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar
Que vai de céu em céu
De mar em mar
Até nunca chegar
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas de ventura
De me procurar.


Miguel Torga

19 abril, 2011

343 - Rosa

















Foto: Shark


“Tu és a forma ideal
Estátua magistral oh alma perenal
Do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo coração sepultas um amor
O riso, a fé a dor
Em sândalos olente cheios de sabor
Em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És láctea estrela
És mãe da realeza
És tudo enfim que tem de belo
Em todo resplendo da santa natureza”




Pixinguinha e João de Barro

10 março, 2011

342 - Pôr do sol Alentejano
























A Terra à Beira da Noite

Com o vagar da sombra da lonjura
que a tarde entorna sobre o descampado,
a distância prolonga-se e perdura
para além deste tempo limitado.

Vem de longe o aroma a terra pura
repetir as lavoiras do passado
e eu sou a mais estranha criatura
sobre a terra que sonha o céu estrelado.

O poente põe luzes na cidade,
mas a cidade nem sequer supõe
a luz dolente que o poente encerra.

Nada me sei, todo me sinto e há-de
ser sempre assim que o sol quando se põe
me põe a mim a prolongar a terra.

Martinho Marques
Foto: Shark