31 maio, 2009

286 - Luzes da ribalta

Foto: Shark

Aplausos para o Actor

O actor acende a boca.
Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeçade búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila,
o que arde destacadamente na noite, é o actor,
com uma voz pura monotonamente
batida pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira o adjectivo da coisa,
a subtileza da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã
com sua divagação de maçã.
Fabrica peixes
mergulhados na própria labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor
contra a face de Deus.
Ornamenta Deus
com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus,
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave
que atravessa a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro.
Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio
que ramificou de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente do Nome.
Nome que se murmura em si,e agita, e enlouquece.
O actor é o grande Nomecheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção da transformação.
Solidifica-se.
Gaseifica-se.
Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas, as ruas - o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça.
Em compacto estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder

18 maio, 2009

285 - Pinguins

Foto: Charquinho

PINGUIM

Bom dia, pingüim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca
Quando você caminha
Parece o Chacrinha
Lelé da caixola
E um velho senhor
Que foi meu professor
No meu tempo de escola
Pingüim, meu amigo
Não zangue comigo
Nem perca a estribeira
Não pergunte por quê
Mas todos põem você
Em cima da geladeira
Vinicius de Morais

16 maio, 2009

284 - Parabéns

Foto: Charquinho

Dia de anos

Com que então caiu na asneira
De fazer na quinta-feira
Vinte e seis anos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse…
Mas fazê-los não parece
De quem tem muito miolo!

Não sei quem foi que me disse
Que fez a mesma tolice
Aqui o ano passado…
Agora o que vem, aposto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo? Coitado!

Não faça tal; porque os anos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho:
Faça outra coisa; que em suma
Não fazer coisa nenhuma,
Também lhe não aconselho.

Mas anos, não caia nessa!
Olhe que a gente começa
Às vezes por brincadeira,
Mas depois se se habitua,
Já não tem vontade sua,
E fá-los, queira ou não queira!
João de Deus

283 - Alentejo ... sempre

Foto: Charquinho

A Alma do Ganhão

Ó terra morena deitada ao sol
Quero ser a alma do ganhão
Cheia de horizonte, cãntico de fonte
Catedral de trigo, azeite e pão

Ó terra morena deitada ao sol
Quero ser a alma da cegonha
Que sobe no vento e ouve o lamento
Do homem que ao sul, trabalha e sonha

Alentejo das casas de cal
Alentejo do sobo e do sal
Alentejo poejo, alecrim
Alentejo das terras sem fim

Ó terra morena deitada ao sol
Quero ser a alma do sobreiro
Estática, selvagem, dona da paisagem
Afrontadando o tempo a corpo inteiro
Rosa Lobato Faria

282 - Sonhos

Foto: Charquinho

Sonho Tropical
Num paraíso onde a sonhar vivi

Não tinha trono, mas eu era rei
Feliz ditoso por viver p'ra ti
Se era na terra, se no céu, não sei

Era uma ilha tropical, daquelas
Onde o amor tem um sabor diferente
Á beira mar, sob um lençol de estrelas
Numa cubata, tu e eu somente

Os dois ao luar num pedacito de tela
E as águas do mar calmas como a noite bela
Perto, os rouxinóis cantavam em serenata
E os teus olhos negros
Eram dois faróis riscando as águas de prata

Mas quando á noite a brisa é calma e quente
Leva o barquito, rumo de aventura
As nossas bocas num delírio ardente
Quase se esmagam, loucas de ternura

Ao acordar, como fiquei tristonho
E acredita, que senti saudade
Daquela ilha tropical de sonho
Que ás vezes sonho na realidade

António Vilar da Costa /
Casimiro Ramos

12 maio, 2009

281 - Cores da Natureza

Foto: Charquinho


Todas as Cores

Todas cores
que tenho na mente
lembram o verde
vermelho-corante
azul-cintilante
branco que se vê longe
perto de um oxidante
laranja-vibrante.
Preto que te leva dentro
de um vazio
perto do mais longe
que se vê distante
quase no horizonte
de um arco-íris
solto flutuante
que se busca ver
tudo que se esconde.
Paulo Tarso Aquarone

280 - O Gato II

Foto: Charquinho

O Gato

De seu pêlo louro e tostado
Um perfume tão doce flui
Que uma noite, ao mimá-lo, fui
Por seu aroma embalsamado.

É a alma familiar da morada;
Ele julga, inspira, demarca
Tudo que seu império abarca;
Será um deus, será uma fada?

Se nesse gato que me é caro,
Como por ímãs atraídos,
Os olhos ponho comovidos
E ali comigo me deparo,

Vejo aturdido a luz que lhe arde
Nas pálidas pupilas ralas,
Claros faróis, vivas opalas,
Que me contemplam sem alarde.
Charles Baudelaire

11 maio, 2009

279 - O Gato

Foto: Charquinho

Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Tu tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
FERNANDO PESSOA

10 maio, 2009

278 - Mar

Foto: Charquinho

Mar

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.
(Sophia de Mello Breyner Andresen)